Dinheiro Local
    Moeda circula paralela ao Real
    Jornal do Brasil - 07/08/2000


    Trabalhadores fundam clube de trocas com padrões monetários regidos pelo 'tupi' e pelo 'bônus'
    GABRIELA MAFORT

      Pelo menos uma vez por mês, um grupo de 60 pessoas se reúne num galpão no Centro do Rio para comprar e vender produtos e serviços, mas sem utilizar o real como moeda. O papel-moeda circulante ali é o tupi e os centavos de tupi, os mirins. Já em São Paulo, cerca de 300 pessoas se espalham aos domingos em cinco grupos em escolas e salas comerciais da Zona Sul. Lá, o padrão monetário é o bônus, negociado em valores de 0,5; 1; 2 e 5.
    Excluídos - Os participantes desses grupos, produtores e consumidores, são em geral pessoas de baixo poder aquisitivo, que estão à margem do mercado de trabalho formal. São pessoas de perfil semelhante à massa que, segundo o IBGE, passa dos 50 milhões de pessoas pelo Brasil (número da população não economicamente ativa do país). Através desse sistema monetário paralelo, eles têm acesso a produtos, bens e serviços que complementam e muitas vezes formam sua renda mensal.
      As moedas "complementares" não têm inflação, não podem ser poupadas e aplicadas, portanto não há juro, jamais escasseiam e só podem circular dentro de clubes ou de redes de trocas. O modelo, utilizado pela primeira vez em 1998 no bairro de Santo Amaro, São Paulo, é inspirado na experiência argentina, onde 400 mil pessoas em 14 províncias já movimentam cerca de US$ 2 bilhões por ano com a moeda complementar local, o crédito.
    Social - "A esse tipo de instrumento monetário paralelo dá-se o nome de moeda social, uma vez que possibilita a inserção de pessoas excluídas da economia. Estamos reinventando a maneira de fazer economia, onde o dinheiro é gerenciado pelas próprias pessoas, lastreado pela confiança, a reciprocidade e a capacidade de produzir e consumir", afirma a socióloga Heloisa Primavera, brasileira que mora na Argentina e uma das arquitetas da idéia.
    Os clubes são formados geralmente por moradores do mesmo bairro, por membros de cooperativas de trabalho e associações. No clube paulista, o sócio recebe, sob a forma de empréstimo, 50 bônus (ou B$ 50) para gastar na feira de troca. Ao mesmo tempo, deve levar para a feira um bem ou serviço no mesmo valor para ser trocado ou vendido. Se desiste de participar, tem que devolver os B$ 50 em moeda ou, se não os tiver, em forma de serviço.
      "A pessoa recebe os bônus porque talvez na primeira feira não encontre comprador para seu produto e com a moeda já pode comprar alguma coisa", explica Carlos Henrique de Castro, um dos sócios à frente do projeto do Clube de Trocas de São Paulo. Castro acumula o cargo de coordenador do clube e contador do banco que administra as finanças dos sócios.
    Moeda - Na verdade, ele exerce o papel de Banco Central, que zela pelo equilíbrio da moeda em circulação. O banco tem também a sua Casa da Moeda, onde o dinheiro é desenhado num computador e impresso. Um bônus (B$ 1) equivale a R$ 1, mas a comparação é feita somente para que as pessoas tenham uma idéia de quanto cobrar por seus produtos. "Ao negociar, pensamos nos valores em bônus", diz Castro.
      A regulação deste mercado não é feita por decretos ou leis, mas por acordos informais entre os próprios sócios. Ao final de cada feira, são realizadas reuniões para discutir abuso de preços, qualidade dos produtos e políticas de melhora das negociações.
    Justiça - "As pessoas ouvem o que as outras têm a dizer e as melhores idéias são implementadas. O mercado é auto-regulador. Se o vizinho nota que a barraca ao lado está cobrando um preço muito alto, ele faz críticas na reunião e é por isso que não há inflação. Existe consenso em torno da idéia de que todos devem praticar um preço justo", afirma o economista Ronaldo Sousa, sócio do Clube de Trocas de São Paulo.
      De seis em seis meses, o banco central faz um balanço para checar se a quantidade de moeda em circulação é igual à quantidade de moeda emitida. A base monetária do Clube de Trocas de São Paulo, ou seja, a quantidade de moeda em circulação, é de B$ 15 mil. O controle é preciso porque, ao participar da feira, os sócios informam a quantidade de bônus com que entraram e com que saíram.
    Tupi - No Rio, onde a experiência é mais recente, o primeiro balanço do banco central, chamado de Ecobanco, deve sair nos próximos meses.
      Diferentemente do bônus paulista, o tupi vale R$ 5, valor que é considerado justo pelo Dieese para uma hora de trabalho. A base monetária do sistema carioca é de 1.620 unidades. Cada clube ou rede de trocas tem autonomia para escolher o quanto valerá a moeda.
      "Nosso intuito é mostrar que a sociedade pode ser pensada de maneira diferente. Queremos resgatar o sentido original da moeda, que é o de facilitar a troca", afirma Marcos Arruda, um dos coordenadores da Rede de Trocas Solidárias do Rio.
    Crescimento - A semente do sistema de moedas sociais continua germinando e crescendo no país com rapidez. Um grupo em Caxias, na Baixada Fluminense, e outro em Teresópolis, na Região Serrana do Rio, está montando sua própria rede. A comunidade da favela Conjunto das Palmeiras, em Fortaleza (CE), onde 90% dos 30 mil moradores ganham até dois salários mínimos, também. Lá a moeda se chamará palmares.